segunda-feira, 20 de julho de 2009

A «lei Vale e Azevedo» do sistema português

Há quem defensa a validade consuetudinária no sistema português de uma norma, não escrita no Código de Processo Penal, que posso designar «lei Vale e Azevedo».

A «lei Vale e Azevedo» é a seguinte: nenhum dirigente de relevo em funções, e mormente em funções de Estado, pode ser constituído arguido ou detido, por mais contundentes que sejam os factos que lhes sejam imputados ou mais graves os crimes de que sejam indiciados. Apesar da pendência judicial enorme sobre o Dr. João Vale e Azevedo, este só foi constituído arguido e detido, em 2001, depois de perder as eleições no Benfica. O caso do Dr. Paulo Pedroso, constituído arguido, e até detido preventivamente, quando era o dirigente n.º 2 do Partido Socialista, foi uma excepção a esta regra de não constituição como arguido de personalidade de relevo, quando ainda esteja em funções. Regra que, todavia, tem sido seguida depois desse sobressalto inesperado.

No caso Recadogate, segundo o Diário IOL, de 20-7-2009, o Dr. Magalhães e Silva, advogado do procurador-geral adjunto, e presidente do Eurojust, Dr. Lopes da Mota, mostrou-se insatifeito com a decisão, de 20-7-2009, por unanimidade, do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) de rejeitar o incidente de suspeição apresentado pelo Dr. Lopes da Mota, e consequente afastamento do inspector Vítor Santos Silva, «que dirige o processo disciplinar que investiga as alegadas pressões de Lopes da Mota» sobre os magistrados que dirigem o inquérito Freeport; e ainda descontente com a decisão do mesmo CSMP, «também por unanimidade», de indeferir «o requerimento no qual o Sr. Dr. Lopes da Mota pedia a publicidade do processo disciplinar, por o regime em vigor não o permitir».

Não consta que essa nota para os media de 20-7-2009, do procurador-geral da República, Dr. Fernando Pinto Monteiro, sobre a decisão do CSMP, esclareça se o regime (legal...) não permite que o Relatório Vítor Santos Silva sobre o Recadogate, que não é processo disciplinar sujeito ao segredo, seja divulgado... Por respeito democrático para com os eleitores esse relatório deveria ser divulgado, para os eleitores aferirem do respeito pelas regras democráticas da separação dos poderes por parte do primeiro-ministro e ministro da Justiça do Governo de Portugal. Ainda mais, quando as queixas sobre a intervenção do Governo do Partido Socialista na esfera, que se quer hermética, da investigação criminal e dos tribunais, são, mais uma vez, objecto de denúncia pública pela direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) - editorial da direcção do SMMP de 20-7-2009.

Continua o Diário IOL, de 20-7-2009:
«"Vale a pena que a PGR, em vez de uma nota sibilina a dizer que foi indeferida a publicidade do processo, informe o país sobre os fundamentos em concreto pelos quais indeferiu essa publicidade", frisou Magalhães e Silva.
"Fui ouvindo durante o dia de hoje que a confidencialidade do processo se destina a proteger o prestígio e a credibilidade das instituições do Estado. Se for isso, eu não quero acreditar", acrescentou o causídico.» (Realce meu)

Não podemos acreditar que a razão de Estado - que não é mais do que a mentira e ocultação política para protecção dos detentores de cargos do Estado - determine o funcionamento da justiça e torça a democracia, mais ainda do que já está. Não podemos acreditar no vigor da «lei Vale e Azevedo».

A «lei Vale e Azevedo» é um dos principais obstáculos ao sucesso do combate à corrupção de Estado. Deve ser queimada, porque é anti-democrática. E os seus defensores banidos da administração do Estado e da política.


Limitação de responsabilidade (disclaimer): O procurador-geral adjunto e presidente do Eurojust José Luís Lopes da Mota, o ministro da Justiça Alberto Bernardes Costa e o primeiro-ministro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, referidos abundantemente nas notícias dos media neste caso, não são, até este momento, que se saiba, arguidos do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade no caso Recadogate. Mesmo se, ou quando, forem constituídos arguidos gozam do direito constitucional à presunção de inocência até ao trânsito em julgado de sentença condenatória.
O primeiro-ministro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa não foi, que se saiba, constituído arguido no processo Freeport pelo cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade. Apesar das referências ao seu alegado estatuto perante as autoridades policiais britânicas (
Serious Organized Crime Office - SOCA), o primeiro-ministro José Sócrates não foi, nem está, que se saiba, acusado de qualquer crime no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Paulo José Fernandes Pedroso foi constituído arguido e detido preventivamente por ordem do juiz de instrução Dr. Rui Teixeira, por indícios (alegadamente referidos por seis jovens e Carlos Silvino da Silva) de abuso sexual sobre quatro crianças da Casa Pia de Lisboa. Foi acusado pelo Ministério Público de
23 crimes de abuso sexual de menores sobre quatro crianças no âmbito do processo de pedofilia da Casa Pia, mas não foi pronunciado pela juíza de instrução Dra. Ana de Barros Queiroz Teixeira e Silva, não tendo ido a julgamento. Em 9-10-2005, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a sua não pronúncia.